User talk:Batsikama
== Arte: compreender Martin Heidegger na visão muntu-angolana ==
Headline text
[edit]Patrício Batsîkama
De acordo com Martin Heidegger, a essência da arte é a poesia e a essência desta é a verdade. Arte é só verdade (Wahrheit) caso for localizada nas engrenagens da História (quando acontece, Geschehen). Isto é, arte e verdade são “coisas” que arrastam o passado no seu acontecimento, o que se justifica pela metafísica ocidental herdeira da Grécia. Repara-se que, com a estética, novo conceito que explica a evolução da metafísica, a “obra da arte” passa a ser objecto duma percepção sensível definida pela experiência psicológica. Logo a arte cujo fim se traduz por “desejo de absoluto” inclina-se a verdade e de modo que a anatomia da beleza passa em segunda mão. De outras palavras, a vitória da estética seria a morte da grande arte (Hegel).
É obra de arte quando é classificada, logo encontramo-la no museu, este sendo uma instituição científica que recolha, estuda e classifica cientificamente a “coisa” (Sache). Isto é, obra de arte seria, literalmente, “algo morto”. O British Museum por exemplo só promove as exposições de autores falecidos, pela mesma razão. Beleza e Verdade, no classicismo grego, são evidenciadas pelo “vivido”: da mesma forma que percebemos sensivelmente a Beleza pelo “namoro” com a “coisa” (Sache), assim também é no caso da Verdade que é uma experiência “vivida” com a “coisa”. Aliás, Martim Heidegger chama essa “coisa” “vivida” de Richtigkeit (correctude) quando atinge seu fim.
Convém salientar nesse caso que arte/verdade e arte/beleza são complementares pelo facto de, ambos processos, facultarem a criação (Geschaffensein), e serem portadores parciais da idiossincrasia (sentido arménio). O tempo histórico (mecânico) na execução da obra de arte transcende/ascende a vivência do executador, da mesma maneira que, as dimensões da verdade focada por uma “obra” ultrapassam a sua época e imortaliza Artista/Obra.
Em princípio, mimesis é “Ser/Verdade”. A existência se decompõe em preexistir natural e pós-existir natural. Se a arte é “obra” do artista e que uma existe em virtude de outro, o preexistir artístico e pós-existir artístico na visão muntu-angolana, seriam Existir/Verdade que contrapõe a materialidade. Uma montanha que precede a existência do homem (preexistir), continuará a existir mesmo, por causa naturais (ou artificiais), venha a desaparecer depois. Será lembrado (pós-existir) nos mitos ou em metalinguagens ou geralmente em cosmónimos. Por exemplo, as torres gémeas World Trade Center já deixaram de existir materialmente, salvo nas fotografias. No entanto, a sua pós-existência está e estará sempre nas lembranças de vítimas de 11 de Setembro 2001 nos Estados Unidos de América e cada vez mais falar-se-á de terrorismo. Nesse caso, estamos perante um pós-existir artístico porque sofreu a “obra” do homem.
A essência da arte, Bila/Yila/Yika (causa, origem) é parcialmente Poesia (-li/kili), sabendo de igual modo, que ociwa (arte) também é –li/ovoli (Existir/Inverdade). A versão concreta muntu-angolana seria Li/Lûngu (Existir/Verdade-Inverdade) onde há concretude. Em outras palavras, a Verdade de Existir, embora relativa aos sentidos físicos, libera arte da Estética (ciência normativa de percepção sensível) e da Filosofia da arte (Martin Heidegger o fez no seu posfácio). O solo sem espírito e a terra sem a acção humana são como duas telas brancas sem conteúdo (aboutness), logo não exercerão sua função de embodiement (Danto). Oci/osi/nsi tido como suporte mediático entre “mundo dos vivos” e “mundo dos antepassados” determina a “essência” da obra na sua relação com Existir (pré e pós-existir) consoante, por um lado, o ndûngu/lûngu e, por outro, de acordo com a pré-Destinação ditada pela harmonia do próprio Existir (pré-definida pela justaposição entre mundo dos vivos e mundo dos antepassados).
Technê (habilidade manual) de uma obra de arte é, para Heidegger, o resultado duma experiência anterior; essa experiência dá ênfase na “realidade material da obra” (das Dinghafte) que rivaliza o habitual da Natureza. Por isso, a obra de arte é Ungewöhnlich, quer dizer insólita, monstruosa porque expõe aquilo que não se vê ordinariamente.
Heidegger decretando arte como «Ser-criado», a sua inserção compreensível em muntu-angolano situar-se-á entre «(Ser)-pré-existido» e «(Ser)-pós-existente». Quer o criador tanto como a sua “Criação” existem materialmente; mas depois da classificação da obra, não será necessário que a sua existência seja condicionada pela matéria, uma vez que a sua “verdade” permanecerá além da existência do executor e da própria matéria executada, ou seja passam a ser «Ser-pós-existente» independentemente do «Ser-criado» (obra) e o Artista (Ser-no-mundo). É assim que arte, fundamentada a partir de alethéia, passa a ser, nas análises de Heidegger, uma Dichtung (poesia) com a inserção do terceiro elemento: observador que melhor é posicionado a “falar” dos dois primeiros, principalmente da essência da “obra”.
Sendo assim, arte/verdade fundamentada na história deixa de exclusivamente ser algo passado, algo morto, embora seja preferência de alguns museus actuais. Dichtung (poesia) implica uma verdade a ser vivida (história presente/contemporânea), tal como as uvas pintadas de Zeuxis em relação a wutadi de Viteix tiveram “razão” se ser/existir; Dichtung (poesia) contende uma verdade revivida (história repete-se, dizia Herodote), tal como L’Avare (O Avarento) de Molière em relação a peça “Kimpa Vita” montada pela Elinga Teatro de Mena Abrantes.
Há poemas sem poesia da mesma forma que há evidência sem verdade; há expressão sem meaning (conteúdo) do mesmo modo que há Ser sem existência. É dessa axiologia que Beleza e Verdade são exploradas na «obra da arte». Ao introduzir o terceiro elemento, Heidegger, decididamente, condiciona a completude do processo. Embora o seu objectivo fosse a «origem da obra de arte», tendo definido já o Ser e o Tempo, as suas análises esclarecem que Arte/Verdade coloca a Beleza no “Ideal vivida” (Hegel: 1993, pp.67-76) e a “obra” é “Realidade vivente”: Dichtung (Moosburger: 2007, pp.47-51).
Eis uma das razões pela qual Heidegger não analisou a fundo os movimentos artísticos da sua época (expressionismo, cubismo, surrealismo, minimalismo) embora admirou a obra de Cézanne, namorou com “Abstracto” de Basque, sem esquecer-se da fascinação que o filósofo tinha na obra de P. Klee. Publicou alguns textos a volta da obra de Chillida. (De Beisteigui: 2005, p.146).
Por um lado, Dichtung se verificava em parte com as produções de Basque, Cézanne, P. Klee e Chillida, mas somente tendo em conta do “lugar” que a historicidade dava a essas obras. Tal foi o caminho para Platão, Aristóteles e muito mais tarde com Kant e Hegel. Dai a sua famosa equação Artista/Obra: Poesia (verdade). Por outro lado, a essência (Wesen) dos movimentos limitava-se pela technê (habilidade material), de maneira que, ainda se procurava estabelecer o Handwerk, ou seja o pensamento manufacturado e sensato (Vernünftiger). No entanto, escrever a história presente ainda era, nessa época, uma anomalia cognoscitiva. E acrescentamos que o valor ôntico e ontológico da arte/kunst/ociwa não mudou até hoje: sempre foi o mesmo onde existiu e existe.
Vimos que arte tem várias substâncias em Lunyaneka: ociwa, onondunge e unongo. No ociwa temos a Existir/Verdade uma vez que a praticabilidade que é testemunhada pela matéria existente deve obedecer ao bem-estar que transcende do mundo-dos-Ancestrais (Kakulu, Yâmba, Zâmba). Ociwa pode ser um Existir natural assim como artificial (artístico). Convém notar que Zâmba, Yâmba deriva do mesmo verbo que Nzâmbi ou Nyâmbi que é, geralmente, Deus nos muntu-angolanos. Isto é, essa arte, a priori natural, determina a cosmovivência dos “Seres” (na terminologia de Heidegger) com o “Ser” (na cosmogonia muntu-angolana). Isto é, o Sujeito heideggeriano por si e na sua localização na existência física ou feérica, é uma dependência às boas normas onde encontra a sua felicidade. Nos Muntu-angolanos, a existência física (homem) é bom por natureza (Sócrates) e, pode ser corrompida pelas circunstâncias inesperadas e alheias da relação Mundo-dos-vivos e Mundo-dos-antepassados. Ociwa leva esse sentido.
Para Onundunge citamos “as considerações do teatro a moda angolana” feitas por Costa Andrade (Ndunduma) em 1980: “não se trata de maior ou menor brilho na interpretação do personagem ou do papel, porque nada é fixo, nem sequer há uma palavra fixa. Há, diríamos, um mote, ou um conceito que enriquece, sempre com palavras ou gestos diferentes, que a imaginação ou a ocasião ditam ao indivíduo que vive o facto teatralizado. Melhor diríamos, que nunca o espectáculo se repete. Cada vivência teatral de um mesmo facto é um espectáculo único, uma nova criação” (Abrantes II: 2005, p.35).
O Muntu-angolano não é fixo (Ergo sum). A sua personalidade varia consoante a sua idade, as funções que irá exercer e consoante a posição da família onde nasceu. Tudo que é Ociwa natural deve obedecer a vontade dos antepassados, e existe médiums para comunicar. Já para Heidegger, “o ser humano é humano somente ao ponto em que compreendeu o seu Ser (como a presença), isto é, simplesmente à extensão que está na abertura de Ser. Sendo humano significa “ser esta abertura”. A língua é uma modalidade singular e privilegiada em que o Ser Humano (Dasein) pode ser esta abertura” (Beisteigui: 2005, p.104). Portanto, onundunge, obedece a liberdade da composição ontológica da existência no Homem (Ser-no-mundo). A língua ou outras linguagens (escritas, escultura, dança, parábola, etc.) são a abertura horizontal (diacrónica). A abertura vertical (sincrónica) consiste em linguagem exprimida pela própria natureza: Njazi (trovoada) durante um período pode significar uma coisa, e mudará de sentido numa outra época, de maneira que influencia a arte. Aliás, como menciona Ndunduma, “…nada é fixo, nem uma palavra fixa” e que, “a imaginação ou a ocasião ditam ao indivíduo que vive o facto teatralizado”. Embora, Ndunduma falava do teatro levado ao palco modernizado, esse facto é literalmente presente nos “teatros naturais” (ritos) angolanos antigos. Obviamente que é uma herança independentemente da nossa vontade e aspiração, formação e experiência. Onundounge faz pensar aos elementos que compõem a personalidade de Ser-no-mundo, consoante a experiência própria, suas preferências, seus instintos que não dependem na natureza nem são ditados e conhecidos dos Antepassados. A personalidade do Ser-no-mundo permite que haja independência circunstancial do Ser-no-mundo em relação aos Antepassados.
Temos finalmente nongo, a parte que gere a intelectualidade no executador da obra de arte. Não temos uma equivalência na terminologia de Heidegger, no entanto, consiste em «conhecedor perfeito e provedor da harmonia entre os dois Mundo da Existência»: do verbo nînga: saber perfeitamente. Omanongonokelo significando “conhecimentos do artista”, convém dizermos que esse artista e a sua obra são diferentes de Ociwa (arte/Beleza) e o Omukwasoke (Executor desta) assim como do Omundunge (arte/razão) e Wulundunge (Executor).
Os termos em Lunyaneka são transponíveis em Umbûmbu, Côkwe e têm suas variantes em Kikôngo e Kimbûndu. Ociwa pode corresponder aquilo que Ethienne Sorriaux chamou «pseudo-arte». Mas a sua realidade ôntica e relação ontológica com seu executor (Heidegger) invade o espaço de «quase-arte» (Sorriaux). Omundunge, portanto é, ao mesmo tempo «quase-arte» e «simili-arte» por duas razões principais: 1) neste aspecto a execução da obra é perfeita, não (só) na imitação das proporções, mas sobretudo na concretude das normas estabelecidas pelo Mundo-dos-antepassados; 2) serve de suporte para continuação da função social do Mundo-dos-antepassados em «Existir/Verdade». Aqui o executor (Ser-no-mundo) é mestre recém “consagrado” cuja pouca experiência não lhe permite compreender a relação entre Verdade e Inverdade. A detenção dos instrumentos epistémicos está ainda em termo de «auto-aprendizagem». Aliás, ndunge deriva de lûnga, longa que significa ensinar, aprender ensinando, aconselhar, por essa razão Kalûnga sendo o mundo-dos-antepassados estabelece a ligação com os “Ser-no-mundo” (Vivos). Onongo é «arte completa» que seria impróprio assimilar a «arte erudita» indo-europeia. Primeiro porque Onongo implica que haja Verdade e Inverdade e o Existir é natural e artístico na sua dimensão de «pré» e de «pós». Essa faculdade pertence ao Ser-no-mundo em constante diálogo (através das linguagens variadas) com o Mundo-dos-antepassados. A seguir temos «arte perfeita» (Tumba) que é obra do Mundo-dos-antepassados e, acima de tudo, «arte per si» que, erradamente atribuída ao Deus (Nzâmbi, Suku) no sentido da grande criação (Ompako), a maravilha/milagre que acontece na colectividade (Ehuviso) e a infinidade da própria Existência – preexistência e pós-existência – geralmente atribuída ao céu infinito Yulu, Nthyulu (Da Silva: 1966, p.293), ou seja Thuku (Origem sem começo nem fim) ou seja sem medida, haelekwa.
A leitura das análises de Martim Heidegger consoante um sistema metafísico muntu-angolano permite-nos estabelecer a diacronia da arte na sua estrutura ôntica e a relação ontológica entre a “Sache” e o Executor: arte começa-se pela «Ociwa» (pseudo-arte), passa depois por «Omundunge» (quase/simili-arte) e por «Onongo» (arte perfeita diferente de erudita) e finalmente «Ompako» ou «Tûmba» (arte per si ou criação per si).